30.
De como Eros foi cuspido (Parte 3, e final)
A invenção da escrita, ou a marcação simbólica da presença humana no
mundo – através de sinais artificiais com significados –, foi o que fez a
História estar além da Pré-História1. As
primeiras grandes civilizações aparecem como civilizações da fala: primeiro
oral (recurso pelo qual o passado, fantasioso e heroico, foi transmitido às
gerações e séculos seguintes), depois escrita (ainda habitado pela oralidade,
fixada no símbolo formal, fantasiado do incrível: o Mysterium tremendum, as narrativas do numinoso que habita o mundo
e o transcende). Mais do que da escrita, o homem é um ser da fala2. A escrita é um artifício, uma
artificialidade necessária, dada aos desvãos do significado hermenêutico. E é
por isso que os livros sagrados são
sagrados apenas àqueles que acreditam neles, e no que eles (conforme
interpretam) comunicam.
O que o Antigo Testamento foi para os hebreus – e depois o Novo, para
o movimento cristão –, também foi, para os gregos do tempo de Platão e ainda depois dele, talvez em menor medida, os dois longos poemas
atribuídos a Homero: Ilíada e Odisséia3.
Duas obras monumentais em que o Amor, sem grande esforço de observação, aparece
como tema dominante. No Antigo Testamento, o amor de um Deus por seu povo, eleito
– às vezes figurado na vida errante e errada de uma prostituta que se casa com
um marido complacente, porque justo, porque bom4;
no Novo Testamento, o Cristo que morre por amor à sua Igreja, sua noiva, em um
tipo modelar para certas relações entre os sexos5.
Na Ilíada, em uma guerra motivada por
vaidades e pelo sequestro de Helena (esposa de Menelau, rei de Troia), objeto da
paixão desenfreada de Páris, filho de Príamo (rei dos gregos); e na Odisséia, na desesperada viagem de um
homem, Odisseu, procurando voltar ao seu reino, à sua casa e à sua esposa muito amada, Penélope.6
Não há, no Antigo Testamento ou em Homero, o que poderíamos chamar de
“idealismo” – não no sentido platônico, ao menos. Há, porém, a onipresente noção de Transcendens, relativo àquilo que,
no mundo, parece maior que o vivente comum, subjugado às vicissitudes do tempo e do espaço.
A noção de eternidade (inexistência de espaço e tempo), aliás, é atributo exclusivo da divindade, ou do que é divino – como o Amor em Hesíodo, o
mais antigo dos deuses7 e “sempre
jovem e viçoso”8, porque nunca preso àquilo
que é ligado à temporalidade, ao humano... como o desejo de um homem por uma
mulher. À alma humana, no entanto, imaginou-se destinos: beatitude eterna ou
tormento, eterno. Conceitos que, somo se nota, carecem daquele dualismo típico
do pitagorismo platônico, e depois cristão. Ser salvo, no programa cristão, somente
é possível mediante uma resposta positiva (logo amorosa) ao αγάπη,
pela graça da fé – já que o amor humano não é ágape e, como tal, é imperfeito. Ser salvo, portanto, é sair da
temporalidade penosa para a eternidade feliz. Até lá, o caminho é o amor
incondicional, confiante; a entrega feliz e... irracional – pois “o absurdo,
que é o estado metafísico do homem consciente, não conduz a Deus.9” O amor nos liga ao divino, porque é
resposta ao amor divino. Mas, aí, é ágape.
E Eros?
O êxtase sexual (erótico), que é o entorpecimento dos sentidos, não
por acaso, tornou-se parte de certos rituais pagãos antigos – principalmente –,
sagrados; como se, aí, no frêmito do corpo inebriado de prazer, o sagrado se
mostrasse operante10. Pelo
gozo e seu resultado, também o sêmen (semente) é expelido... e a vida que
aparece, se adequadamente plantada. É o “milagre da vida”, coisa sagrada. O
erótico, em quase todas as antigas culturas, não era um “tabu”; não como se
tornaria sob a influência cristã, pela noção do “pecado”11, embora houvesse regras para as
afecções e as conquistas (não no sentido de corte,
cortejo), geralmente associadas à noção de posse: essa mulher é minha, esse
efebo é meu, etc. Na moral cristã, porém, o Outro não pode ser nosso objeto, nem instrumento para... o gozo sexual egoísta, por exemplo. Tal
egoísmo, aliás, é uma das falhas de caráter mais combatidas por essa mesma
moral cristã. O bom Stendhal (Marie-Henri Beyle) afirmou: “O amor é o milagre
da civilização [cristã, claro]. Só se encontra um amor físico e dos mais
grosseiros entre os povos selvagens ou muito bárbaros.12” O “casar por amor” a uma pessoa determinada, individual, no
entanto, é, já, corruptela dessa mesmíssima “invenção milagrosa” da
civilização; coisa de dois séculos atrás, somente.13
O casamento entre os cristãos antigos era basicamente um ato de
obediência a Deus (por amor a ele), a fim de que o imperativo “sede fecundos,
multiplicai-vos, enchei a terra...”14
não fosse obedecido à base da libertinagem “imoral do sexo desregrado”, mas realizado
em leito santo e reservado ao casal, base da família, que é sagrada – no
símbolo do próprio Deus em relação ao seu povo (como mostrado), e também no
Cristo, “noivo” da Igreja. Assim, o Apóstolo recomenda “aos solteiros e às
viúvas que é bom ficarem assim, como eu. Mas se eles não podem viver na
continência, que se casem; pois é melhor casar-se que ficar ardendo”15, no desejo do sexo, naturalmente. O
sexo somente é permitido dentro do matrimônio. Santo Agostinho, obediente ao
Apóstolo16 e talvez ainda por
alguma influência dos maniqueus17, seita
da qual fez parte, entende que o casamento é inferior à castidade. Antes da
Queda, ele diz, não havia “a vergonha do desejo”:
Os membros genitais obedeciam ao arbítrio
da vontade tal como os demais, e o marido ter-se-ia introduzido nas entranhas
da esposa sem o aguilhão arrebatador da paixão libidinosa, na tranquilidade da
alma e sem corrupção alguma da integridade do corpo. [...] E então poderia
assim o sêmen viril penetrar no útero da esposa mantendo-se a integridade do
órgão genital feminino – tal como presentemente o fluxo do sangue menstrual
pode sair do útero de uma virgem sem prejuízo para a sua integridade. De fato,
é pela mesma via que um se introduz e o outro sai.18
“É pela mesma via que um se introduz e o outro sai...” Que imagem! Que
loucura!
E parece que a descrição do sexo santo não é lá assim tão convincente,
mas, antes, atiça os sentidos do Doutor da Graça, que encerra o texto assim:
É mais
conveniente que nossa exposição se refreie pelo pudor que nos retrai do que
seja ajudada pela nossa débil eloquência. [...] Como é que, então, um tal
assunto poderia sugerir aos nossos sentidos humanos outra coisa que não seja o
exercício duma turbulenta paixão em vez do exercício de uma tranquila vontade?
Daí que o pudor impeça quem fala, embora não faltem argumentos a quem pensa.19
Em 401, contra Joviniano – para quem a virgindade e o celibato não
eram superiores ao casamento –, Agostinho afirmou que tais ensinamentos eram
“monstruosos”20. Combatendo esse tipo
de ensino ou rumor, na Igreja da Itália, escreveu o De bono conjugali (Sobre o
bem do casamento, em 400-1). “Esse modo de tratar era necessário”, diz Robert
A. Markus, “porque alegava-se então que era impossível responder a Joviniano
sem depreciar o casamento.21” Era? Ao
De bono conjugali seguiu-se o De sancta virginitate (Sobre a santa virgindade), redigido no
mesmo ano de 401. “Os dois tratados em conjunto significavam [a] reafirmação de
uma visão básica, moderada e tradicional, sobre as duas vocações: o casamento é
bom, a virgindade é melhor.22” A
enorme influência de Agostinho sobre a cultura moral (e a sexual,
evidentemente) do Ocidente é lugar comum nas afirmações dos seus intérpretes23. Naquele que é considerado o maior best-seller da Europa do século XVIII, Teresa Filósofa24, a questão é levada ao extremo, para
um resultar em um limite, na intenção de apontar a conclusão... ridícula:
Segundo a religião cristã, é preciso
tender para a maior perfeição. O estado de virgindade, segundo ela, é mais
perfeito do que o do casamento. Ora, é evidente que a perfeição da religião
cristã tende à destruição do gênero humano. Se os esforços, os discursos dos
padres tivessem sucesso, em sessenta ou oitenta anos o gênero humano estaria
destruído. Pode essa religião ser de Deus? [...] Para ser perfeito cristão é
preciso ser ignorante, acreditar cegamente, renunciar a todos os prazeres, às
honras, às riquezas, abandonar os seus pais, os seus amigos, guardar a
virgindade, numa palavra, fazer tudo o que é contrário à natureza.25
N’O Anticristo, Nietzsche
não pensa em cortesias ou medidas à reprovação que faz à opção cristã que torna, na hermenêutica teológica dos seus
intérpretes mais ortodoxos, o fraco em forte, o pequeno em grande... e sempre aos
olhos de Deus26. Ora, não é assim que
aparece no Apóstolo? “Porque o insensato de Deus é mais sábio que os homens, e
o débil de Deus é mais forte que os homens.27”
E foi assim que
O cristianismo tomou o partido de tudo o que é
fraco, baixo, malogrado, transformou em ideal aquilo que contraria os instintos de conservação da vida forte; corrompeu a
própria razão das naturezas mais fortes de espírito, ensinando-lhes a perceber
como pecaminosos, como enganosos, como tentações
os valores supremos do espírito. E exemplo mais lamentável – a corrupção de
Pascal, que acreditava na corrupção de sua razão pelo pecado original, quando
ela fora corrompida apenas pelo seu cristianismo!28
Em um trecho de O conceito de
angústia, Kierkegaard é menos contundente, mas não menos crítico,
mostrando, de modo breve e lúcido, como Eros foi cuspido pela moral do
movimento cristão nascente (do qual, ainda, de modo incerto e vacilante,
insiste em fazer parte):
No cristianismo
o religioso suspendeu o erótico, não só por um equívoco ético, como o
pecaminoso, mas sim como o indiferente, porque não há no espírito nenhuma
diferença de homem ou mulher. Aqui, o erótico não está ironicamente
neutralizado, mas suspenso, porque a tendência do cristianismo é a de levar o
espírito adiante.29
“Levar o espírito adiante”
implica em aperfeiçoá-lo moralmente, na fé, conforme a lei do amor, em seu
imperativo – para tanto, em seu progresso e recompensa, não há sexo. N’A Cidade de Deus, Agostinho fala de
alguns que “concluíram que as mulheres não ressuscitarão em seu sexo, mas no do
homem”, por serem inferiores aos homens e feitas a partir do homem (de sua
costela) – interpretação que o Hiponense condena, dizendo: “Tenho para mim que
a verdade está do lado daqueles que creem que ressuscitarão ambos os sexos.30” Inda mais que, na reta final de tal
aperfeiçoamento do espírito, “não haverá nem comércio carnal nem parto. Os
membros da mulher não serão aptos para o uso antigo [o coito procriativo], e
sim para a nova beleza, que não excitará a concupiscência de quem a
contemple...”31, ou seja: não haverá
mais o desejo do sexo.
As éticas do período helênico
são fundamentadas na noção de eudaimonía
(a estoica e a epicurista, principalmente), à qual Agostinho também adere, mas sem
subscrevê-la. Colocando o primado do amor
(caridade), “ama e faz o que quiseres”32,
e este à luz do Mestre interior (da Verdade revelada ao intellectus e à fides), o
Hiponense estabelece o fundamento que, da Patrística à Reforma (com Lutero e depois
dele33), será dominante. A mudança mais
significativa somente virá no século XVIII, com Immanuel Kant – que procura
fundamentar a ética (ou a lei moral) não em heteronomias, mas na autonomia do dever34,
conforme o imperativo: “Age de tal forma”, como
se, als ob. Em Agostinho, encontramos: “Por
esse amor [ágape], portanto, como por um alvo proposto, pelo qual
digas tudo o que dizes, o que quer que narres faze-o de tal forma que aquele
que te ouve, ouvindo, creia e, crendo, espere e, esperando, ame”35. E não há, aí, para o seu cumprimento,
restrições sexistas36. O
amor, em Agostinho, é resposta positiva a Deus, que nos “amou primeiro”; em Kant,
é resposta à nossa consciência individual, através da simples razão. No
imperativo categórico kantiano não há amor - ao menos no seu sentido conceitual mais imediato -; no de Agostinho, é ágape. De um ou de outro modo, Eros está
ausente.
O Cristo, nas interpretações de Paulo e Agostinho, apresenta o Pai como alguém que é amoroso, compassivo, justo, perdoador, bom pastor e providencial. “O ensino central de Jesus é que ‘Deus é amor’. [...] Deus nos ama, nos entende e nos ouve.” Afirma Tissa Balasuriya. “Quanto a nós”, ela conclui, “devemos amar a Deus e, em Deus, todos os seres humanos. [...]. O amor dá glória a Deus e realiza as pessoas humanas.37” A realização humana, em Sócrates, é obtida mediante a reflexão (razão); no cristianismo, na entrega feliz, por amor, obediente, pela fé. São dois polos distintos que, em Agostinho, foram co-fundidos com grande êxito – ao menos para as conveniências teológico-cristãs majoritárias.
Consta que, em janeiro de 1646, quando Etienne Pascal, pai de Pascal38, encontrava-se enfermo – por causa de uma séria lesão na perna –, dois homens piedosos vieram cuidar dele; eram jansenistas39, movidos não por um senso de “dever moral kantinano”, mas animados por ágape... Poderíamos pensar assim, e estaríamos terrivelmente errados em nosso pensamento. Lembre-se de Pessoa: “Nunca amamos alguém. Amamos, tão-somente, a ideia que fazemos de alguém. É a um conceito nosso – em suma, é a nós mesmos – que amamos.40” Pessoa fala do amor romântico, como já mostrei; mas, como também já foi mostrado, o amor romântico supõe o sublime, o absoluto, que seria o seu fundamento. Assim, pode-se perfeitamente, e sem qualquer prejuízo à análise, relacioná-lo à ágape. Mas, ah!,
Consta que, em janeiro de 1646, quando Etienne Pascal, pai de Pascal38, encontrava-se enfermo – por causa de uma séria lesão na perna –, dois homens piedosos vieram cuidar dele; eram jansenistas39, movidos não por um senso de “dever moral kantinano”, mas animados por ágape... Poderíamos pensar assim, e estaríamos terrivelmente errados em nosso pensamento. Lembre-se de Pessoa: “Nunca amamos alguém. Amamos, tão-somente, a ideia que fazemos de alguém. É a um conceito nosso – em suma, é a nós mesmos – que amamos.40” Pessoa fala do amor romântico, como já mostrei; mas, como também já foi mostrado, o amor romântico supõe o sublime, o absoluto, que seria o seu fundamento. Assim, pode-se perfeitamente, e sem qualquer prejuízo à análise, relacioná-lo à ágape. Mas, ah!,
O indivíduo
loucamente apaixonado é como o convertido que deixa casa, filhos, tudo pela fé.
Ou como o terrorista que mata, mas por razões idealistas. O prazer não possui
essa dignidade ética. O erotismo masculino [...] é absolutamente o inverso da
ética. Esta impõe que se considere o outro ser humano como fim e jamais como
meio. O objeto do desejo erótico masculino, ao contrário, é meio, como o
alimento, como a água, como a cama para quem tem sono. Tudo o que serve para
satisfazer uma necessidade é meio. Até mesmo a reciprocidade, no erotismo
masculino, é egoísta. O prazer da mulher é desejado em vista do próprio prazer.41
É o Eu, afinal – amour-propre
–, de todos os e por todos os meios que pudermos pensar, quem ama e/ou odeia42. No Fragmento de teplitz, de Novalis (Friedrich von Hardenberg): “Todo
amor arbitrário no sentido conhecido é uma religião – que tem e pode ter apenas um único apóstolo, evangelista e adepto –
e pode – mas não precisa – ser religião recíproca. / Onde o objeto exclui o
ciúme por sua natureza – assim é a religião cristã – o amor cristão.43” O
culto a Deus ou o amor à pessoa amada é – fatalidade! – amour-propre. Allan Bloom, na leitura que faz do Emílio, de Jean-Jacques Rousseau44, e ao observar o comportamento amoroso
dos estudantes europeus (anos 80), usa essa mesma expressão para tratar sobre o
“novo indivíduo romântico”, contra a noção blasé
de “amor ao semelhante”, desfocado do Eu, em uma reciprocidade igualmente
romântico-idealista, imano-transcendente:
O melhor ponto de entrada no especialíssimo mundo habitado
pelos estudantes de nossos dias é o fato espantoso de eles não costumarem
dizer, no que antigamente se chamava casos de amor, “Eu te amo”, “Sempre te
amarei”. Um deles me contou que fala, claro, “Eu te amo” para as amiguinhas,
“quando estamos rompendo”. É dessa forma limpa e fácil que eles rompem, sem
danos nem defeitos. Entende-se que isso é moralidade, respeito pela liberdade
dos outros.45
Max Stirner46 – contemporâneo de Kierkegaard,
apontado como um dos precursores do existencialismo –, ex-aluno de Hegel e
anti-hegeliano, e no espírito de Feuerbach47,
compreendeu ainda mais profundamente essa questão do amor, para além do Eros grego ou do ágape cristão. Naquele que foi
o seu único livro48, Stirner
afirma que, qualquer que seja a nossa esperança ou afecção, sua sede, lugar de
convergência e retorno, é sempre o nosso Eu,
o nosso Eu mesmo. Qualquer que seja a nossa
definição para amor, ela não vem e nem vai além do amour de soi, amour-propre.
Em uma época marcada pelo idealismo platônico-cristão, tais afirmações
não tornaram a obra de Stirner popular entre os seus; muito ao contrário –
Stirner morreu na miséria e na obscuridade. Para além de Kierkegaard (ainda
preso às amarras de uma dogmática cristã cambaleante) e Schopenhauer (para quem
o verdadeiro filósofo deveria ser um idealista), Stirner ousou afirmar o Eu como
fundamento e limite de toda a nossa noção
de existencialidade e sentido – mesmo na ausência deste mesmo “sentido”. O
homem não é nada – que é diferente de nada
é –, e somente o Eu existe, fundado em nada, sobre o nada.
Na tradição que começa com Platão, conhecer é a principal atividade da
espécie humana, e seu valor depende de tal efetivação: “Uma vida não refletida”,
dizia Sócrates, diante de seus juízes e do povo de Atenas, “não é digna de ser
vivida.49” Tal concepção estava intrinsecamente
ligada ao idealismo, em que o mundo aparente não é mais que simulacro do mundo
real, ideal. A consciência humana estava, pois, entre os dois, e a missão daquele
que reflete é passar da aparência para o real, da opinião ao ser. Dessa atitude,
caracteristicamente essencialista, resulta, como consequência, a determinação
da natureza dos indivíduos, tidos por cultos ou incultos, sábios ou tolos, conscientes
ou alienados. Na Modernidade, essas determinações da realidade – referidas a
partir da relação entre o fenômeno considerado e sua instância superior – serão
fundamentais à legitimação das instituições, em resposta às exigências da razão
humana, louvada e promovida pela burguesia cristã do século XVIII. O processo,
por outro lado, deu início ao que talvez seja legítimo chamar de “emancipação
da sociedade”, no que diz respeito às religiões, contra os abusos e os dogmas da
Igreja institucionalizada. O pensamento, ou a razão pura, pouco a pouco – e
ainda hoje está em tal processo –, tornou-se o fator decisivo à emancipação do
indivíduo, contra potenciais arbitrariedades da Igreja, da monarquia, do
romantismo, etc. O Eu (consciência individual), mais que antes, foi
colocado dentro e à frente de tudo, no lugar
por onde esse mesmo tudo poderia e deveria ser avaliado, questionado, aceito,
rejeitado, amado, odiado... “Por isso é que Descartes, para quem isso
finalmente se tornou claro, pôde construir a proposição: penso, logo existo”,
afirma Stirner.50
Autores ortodoxos costumam reproduzir as ideias e os conceitos que,
engessados, vêm sendo combatidos, desde Stirner – e com ele –, por se mostrarem
viciados em noções poético-metafísicas, na inconsciente vontade de que isso seja assim como eu desejo que seja.
Nisso, por exemplo, ao tratar sobre o solidarismo,
Reinholdo Ullmann e Aloysio Bohnen subscrevem a definição de Oswald von Nell-Breuning51, para quem “o princípio da
solidariedade é bilateral (zweiseitig),
por tratar das relações recíprocas dos membros com a sociedade e desta com
aqueles”52, ao que, comentam,
definitivos e elogiosos: “Isso discrepa, inteiramente, das ideias do
individualismo, que nega a natureza social do homem, e do coletivismo, o qual
subtrai ao ser humano a sua dignidade de pessoa.53”
Uma interpretação fechada ao que, aqui, é o individualismo em Stirner, ou o
egoísmo, ainda segundo ele. Não ocorre aos autores que o conceito de
“solidariedade” seja mero construto social, não correspondendo exatamente aos interiores
“anseios nobres” e “comuns” dos indivíduos: nada nobres, nada incomuns. Outros
autores, como R. W. K. Paterson – crítico e divulgador da obra de Stirner54 –, não veem no homem senão, às vezes
de modo bem inconsciente, a fria e permanente luta pela vida, à qual foi
antecipado, lançado e, nela, destinado à coisa nenhuma senão ser-si-mesma (permanência), sem vocação para o grande depois, no glorioso triunfo da alma piedosa, amante de Deus
ou da sua Ideia, “clara” ou embaçada na impossibilidade da precisão definitiva55, embora plena de confiança – como é
requerido ao que tem fé56.
Um homem não
está “destinado” a nada, não tem nenhuma “tarefa” e nenhuma “vocação”, como
tampouco uma planta ou um animal têm um “destino”. A flor não obedece ao
destino de desabrochar, mas emprega todas as suas forças para gozar o mais
possível do mundo e consumi-lo [...]. Não é no futuro que se encontra esse
objeto da nostalgia que é o “homem verdadeiro”, mas no presente existente e
real. [...] Eu é que sou o homem verdadeiro [...]. Tudo o que é
“verdadeiramente humano” é Minha propriedade.57
O elogio vibrante ao “egoísmo” tem por sede a noção do “eu que me
possuo”, que sou, realmente a “única coisa que disponho, e que posso chamar de
meu”. O termo, aí, não tem a conotação vulgar do senso comum58. Para esse, e se é o caso, quanto mais
o indivíduo tem amor a seu Deus ou ao
“seu próximo”, tanto mais egoísta é, se mostra. O não amor a Deus ou ao
próximo, também seria uma afetação egoísta. Assim, “devo reivindicar o egoísmo
contra as mentiras da devoção e da abnegação dos idealistas, dos humanistas –
egoístas hipócritas, ‘vergonhosos e pervertidos’ – e contra estes ‘grandes
egoístas’ que são Deus e seus equivalentes humanitários.59” O amor romântico é carente de
absolutos e, como tal, egoísta por natureza... e, pior, equivocado quanto ao
seu fundamento. Se Eros foi cuspido pelo cristianismo, ágape é escarrado por Stirner, Feuerbach, Freud60, Nietzsche, Pessoa, entre outros. O
Eu, conscientemente emancipado, sabe-se lançado no vazio que é o Mundo da vida,
de onde não pode escapar senão anulando-se. O coração das religiões não é o
amor, algum amor, como querem os sacerdotes e os fieis, mas o Eu desejante,
egoísta.
Duas mulheres conversavam
sobre seus amores. Uma delas diz: ‘Eu o amo porque o amo [Silesius]. Pelas
coisas que ele me fala. Me canta canções. Me mostra o mundo. Toco o
meu corpo, e ele estremece. Nada me dá, mas me faz bonita... Eu o
amarei mesmo que me abandone. Sentirei saudades...’ A outra diz: ‘Eu o amo porque está sempre pronto a
atender meus desejos. Nada me recusa.
Quando não me quer dar eu choro,
insisto, prometo beijos e ele muda de ideia...’ Assim são os dois tipos de
religião.61
Então, sim, é assim.
E, no final, acaba sendo a mesma coisa: tudo está voltado
para o Eu, que é de onde tudo parte. Eu que amo assim, Eu que amo assado. É, além
de mim, não há mais nada. O mesmo vale para você, em relação a você mesmo e os
Outros. O próximo é distante, para todo o sempre. Amém.
1 E, aqui, a história não é “a ciência do
passado”, como na crítica de Marc Bloch. Se falar assim é falar errado – por
sua imprecisão natural, geralmente fincada em anacronismos e análises
inescrupulosas –, evito o erro. (Cf. BLOCH, Marc. Apologia da História, ou, O ofício do historiador. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar Ed., 2001. p. 52). O sentido aqui é, ainda, aquele que aparece em
uma nota de Engels ao Manifesto do
Partido Comunista – na edição inglesa de 1888. À afirmação: “A história de
toda sociedade até hoje é a história de lutas de classes”, vem a nota: “Isto é,
toda a história escrita.” (ENGELS, Friedrich; MARX, Karl. Manifesto do Partido Comunista. 10 ed. Petrópolis: Vozes, 2000. p.
66. [Col. Clássicos do Pensamento Político, 24]). O mesmo Engels, em “O papel
do trabalho na transformação do macaco em homem” (escrito em 1876, e publicado
apenas em 1896), mostra como o trabalho (no sentido de produção de bens,
manipulação da natureza) precedeu a linguagem, na evolução do homem. “Uma
análise comparativa entre os homens e os animais nos leva à constatação de que
esta teoria da linguagem a partir do trabalho e pelo trabalho é a que mais
satisfaz. [...] O trabalho, primeiro, depois a palavra articulada,
constituíram-se nos dois principais fatores que atuaram na transformação
gradual do cérebro do macaco em cérebro humano que, não obstante sua
semelhança, é consideravelmente superior a ele quanto ao tamanho e à perfeição.
Ao desenvolvimento do cérebro correspondeu o desenvolvimento de seus
instrumentos imediatos: os órgãos sensoriais.” (ENGELS, F. O papel do trabalho na transformação do macaco em homem. 3. ed. São
Paulo: Global Editora, 1986. p. 23-25. [Col. Universidade Popular]). O homem pré-histórico se comunicava através
de desenhos (como os que existem até hoje, em paredes de cavernas). Em tais
representações (pintura rupestres), trocavam mensagens, transmitiam ideias,
desejos e necessidades. Mas ainda não era um tipo de “escrita”, porque faltava
organização, padronização, etc. Até que se prove o contrário, foi na antiga
Mesopotâmia, por volta de 4000 a.C., que a escrita foi criada, pelos sumérios –
a cuneiforme, em placas de barro. Muito do que sabemos sobre este período, é
por meio de placas de argila com registros cotidianos, administrativos,
econômicos e políticos da época. Também os egípcios, no mesmo período, criaram
os hieróglifos, que foram aplicados à hierografia.
2
Em respaldo ao afirmado, e partindo de análises heideggerianas, ver: GMEINER,
Conceição Neves. A Morada do Ser: uma abordagem filosófica da linguagem na leitura
de Martin Heidegger. Santos, SP: Leopoldianum, 1998.
3
“Essas obras resultam aparentemente da fusão de poemas de autores
desconhecidos, realizada, através do tempo, por uma corporação de aedos
intitulados Homéridas, isto é, descendentes de Homero, que os transmitiam
oralmente de geração em geração. A mais antiga edição escrita de que se tem
notícia não foi certamente a primeira que se fez. Foi a determinada, no século
VI a.C., por Pisítrato, tirano de Atenas, ou por seu filho e sucessor,
Hiparco.” (BRUNA, Jaime. Introdução. In: HOMERO. Odisséia. São Paulo: Cultrix, 2006. p. 7). “De facto, no decorrer
da história nenhum poeta, nenhuma personalidade literária ocupou na vida do seu
povo um lugar semelhante. Ele [Homero] foi o símbolo por excelência deste povo
[os Gregos], a autoridade incontestada dos primeiros tempos da sua história e
uma figura de importância decisiva na criação do seu panteão, assim como o
poeta preferido, o mais largamente citado.” (FINLEY. M. I. O mundo de Ulisses. Portugal: Editorial Presença, 1972. p. 13.
[Col. Biblioteca de Textos Universitários, 1]).
4
Como em Oséias 1, 2: “Disse Iahweh a Oséias: ‘Vai, toma
para ti uma mulher que se entregue à prostituição e filhos da prostituição,
porque a terra se prostituiu constantemente, afastando-se de Iahweh’.” (BJ). O
casamento de Oséias é um símbolo, figurando a relação de Deus com os
israelitas, infiéis: “Oséias amou e ama ainda uma mulher que lhe responde a
esse amor apenas com a traição. Assim também Iahweh ama sempre Israel, esposa
infiel, e após tê-la provado dar-lhe-á novamente as alegrias do primeiro amor e
tornará o amor de sua esposa inquebrantável e indefectível (caps. 1-3).” (OSTY,
É. Nota [b]. In: A BÍBLIA DE JERUSALÉM: Oséias. São Paulo: Edições Paulinas,
1993. p. 1715).
5
Como em Efésios 5, 25: “Maridos, amai as vossas mulheres como Cristo amou a
Igreja e se entregou por ela.” E como na parábola das 10 virgens (Mateus 25,
1-13), em que o Cristo surge como o noivo esperado, e as virgens fazem figura à
Igreja, que deve estar atenta, com azeite em seus candeeiros, esperando-o –
como uma Penélope ao seu Odisseu.
6
Para uma introdução aos poemas de “Homero” e à própria “questão homérica”, ver
o já referido livro de Finley, O mundo de
Ulisses, bem como o ensaio de: NUNES, Carlos Alberto. A questão homérica.
In: HOMERO. Ilíada. Rio de Janeiro:
Nova Fronteira, 2011. p. 9-63. (Col. Saraiva de Bolso).
7
HESÍODO. Teogonia, 116 s; como citado n’O
banquete 178 b. PLATÃO. O banquete. In: _____. Diálogos. 2. ed. São Paulo: Abril Cultural, 1983. (Col. Os
Pensadores).
8
Agora é Agatão quem fala, também n’O
banquete, 195 c: “Eu, embora com Fedro concorde em muitos outros pontos,
nisso não concordo, em que Amor seja mais antigo que Crono e Jápeto, mas ao
contrário afirmo ser ele o mais novo dos deuses e sempre jovem.” E, antes: “Uma
grande prova do que digo ele [Amor] próprio fornece, quando em fuga foge da
velhice, que é rápida evidentemente, e que em todo caso, mais rápida do que
devia, para nós se encaminha. De sua natureza Amor a odeia e nem de longe se
lhe aproxima. Com os jovens ele está sempre em seu convívio e ao seu lado.” (O banquete, 195 b).
9
CAMUS, Albert. O mito de Sísifo. Rio
de Janeiro: Edições BestBolso, 2010. p. 49. Antes, Camus afirmara: “O
cristianismo é o escândalo, e o que Kierkegaard pede com simplicidade [em Temor e tremor] é o terceiro sacrifício
exigido por Inácio de Loyola, aquele que com o qual Deus mais se delicia: ‘o
sacrifício do intelecto’.” (CAMUS, 2010, p. 47).
10 Não é de modo leviano ou
gratuito que a escultura de Santa Teresa de Ávila (1515-1582), de Gian Lorenzo Bernini (1598-1680), representa a
santa como uma mulher tendo um orgasmo. Ao seu lado, à sua direita, um anjo lhe
trespassa com uma seta de amor divino (ágape)
– é o Eros esculpido e encarnado (ou “cuspido e cagado”) na fantasia cristã,
pois deturpado. Esculpida
entre 1645 e 1652, no
estilo barroco, a
escultura está exposta, hoje, em um
nicho de mármore e bronze dourado, na Capela Cornaro, na Igreja de Santa Maria
dela Vittoria, em Roma. Também as Mênades (ou Bacantes, ou Tíades, ou
Bassáridas), as fanáticas seguidoras e adoradoras de Dioniso, são conhecidas
por seus transes e êxtases. No culto, dançavam livre e lascivamente, entregues
às forças da natureza mais primitiva. No êxtase, eram selvagens: na embriaguez,
na autoflagelação e no sexo. Assim Dionísio era louvado. Exemplos de rituais
desse tipo, por todo o mundo, são incontáveis.
11
E, aqui, discordo de meu antigo professor de latim, Reinholdo Ullmann, que
afirma “Já [haver] em Homero (século VIII a.C.) exemplos de manifestação de
consciência de pecado: Páris, que se reconhece merecedor de repreensão, por
parte de Hector [Ilíada III, 59];
Helena, que se declara impudica como uma cadela e coberta de vergonha e
ignomínia. [Ilíada III, 180 e 242]”
(ULLMANN, Reinholdo Aloysio. Amor e sexo na Grécia Antiga. Porto Alegre:
EDIPUCRS, 2005. p. 17. [Col. Filosofia, 194]). A noção de culpa (ato da
consciência) não tem relação evidente com a noção de pecado (contra o divino).
Tal consciência (moral), manifestada no monoteísmo hebreu e depois requerida
pelos cristãos – depois pluripartida ao Ocidente – não existia na Grécia de
Homero, Platão, etc. Hamartía (ou hamártema) era um erro involuntário; e
significava menos ainda, nesse sentido: era a demência (ou delírio ou loucura),
provocado por ação de algum deus (ou daímôn),
contra um humano, por alguma ação sua, uma má ação. Somente muito depois é que hamártema ganhou, no monoteísmo hebreu
(e depois cristão), o sentido de “pecado contra Deus”.
12
STENDHAL. Do amor. Porto Alegre:
L&PM, 2011. p. 53 (Livro 1, cap. 26). (Col. L&PM Pocket, 610).
13
Volto ao tema mais adiante.
14
Gênesis 1, 28 (BJ).
15
1 Coríntios 7, 8-9 (TEB).
16
A quem prefere, entre todos os escritores da Bíblia. “Lancei-me evidentemente sobre o venerável estilo (as
Sagrada Escritura)”, ele diz, “ditada pelo vosso Espírito, preferindo, entre
outros autores, o Apóstolo São Paulo.” (Conf.,
VII, 21; AGOSTINHO, Santo. Confissões. São Paulo: Nova
Cultural, 1996. [Col. Os Pensadores]).
17
Aos quais se refere como “amantes da vaidade e indagadores da mentira. Nisso
era-lhes companheiro.” (Conf., IV,
2). O maniqueísmo ensinava a doutrina dos três selos: da boca (contra as
blasfêmias, mentiras, pornografias, etc.), das mãos (contra a violência às
coisas vivas, como frutos, animais, homens, etc.) e dos seios (contra as
sensações, a erotização dos sentidos, etc.). Quando fala da sua relação com a
mãe de Adeodato – que Jostein Gaarder chama, romanticamente e sem fundamentos,
de Flória Emília –, seu filho, diz que era fiel no leito, e que, “com meu
exemplo aprendi claramente, por experiência, qual é a distância que existe
entre a moderação do prazer conjugal, contratado em vista da geração, e o pacto
do amor sensual. Deste também nascem filhos, mas contra a vontade dos pais, se
bem que, uma vez nascidos, se vejam obrigados a amá-los.” (Conf., IV, 2). O ideal maniqueu, relativo ao sexo, é que ele não
exista, e mesmo o casamento. Mas, havendo o sexo, que ele não gere filhos – o
que equivaleria a perpetuar as trevas. Para mais sobre o maniqueísmo: COSTA,
Marcos Roberto Nunes. Maniqueísmo: história, filosofia e religião. Petrópolis:
Vozes, 2003. Na fantasiosa carta de Flória, no livro de Gaarder, ela pergunta
(ou acusa) ao Hiponense: “Já te ocorreu que talvez sejas tu que vês os dons de
Deus com desdém? Espanta-me que teu desprezo pelo mundo dos sentidos possa
derivar antes dos maniqueus e dos platônicos que do próprio Nazareno.”
(GAARDER, Jostein. Vita brevis: a
carta de Flória Emília para Aurélio Agostinho. São Paulo: Companhia das Letras,
1997. p. 49). Eu colocaria, na carta de “Flória”, também o apóstolo Paulo.
18
De civ. Dei,
XIV, XXVI; AGOSTINHO, Santo. A Cidade de
Deus. 2. ed. Lisboa: Serviço de Educação e Bolsas / Fundação Calouste Gulbenkian,
2000. p. 1314. v. 2.
19
De civ. Dei,
XIV, XXVI.
20 Retractationes, II, 22,1;
AUGUSTIN, Saint. Retractationes. In: Bibliothèque
augustinienne (B.A.). Oeuvres de Saint
Augustin. Paris: Desclée de Brouwer, 1951. v. 12.
21
MARKUS, Robert A. O fim do cristianismo
antigo. São Paulo: Paulus, 1997. p. 54. E: “Em 415, escrevendo a Jerônimo,
Agostinho repetidamente elogiava o ‘esplêndido tratado’ de Jerônimo contra
Joviniano.” (MARKUS, 1997, p. 54). Cf. AUGUSTINE, Saint; JEROME,
Saint. Letters of Augustine (n.
28, 71, 82) and the Letters of Jerome (n. 112). In: A
select library of Nicene and Post-Nicene Fathers of the Christian Church. Oxford: Parker; New York: Christian
Literature Co., 1890-1900.
22 MARKUS, 1997, p. 54. As referências a Agostinho,
de onde Markus faz a referida interpretação: De bono conj., 8, 8; 9, 9; 23, 28; De virg., 18. Tais obras fazem parte dos Tratados Morales, na BAC.
Assim: AGOSTINHO, Santo. Del bien del matrimonio; Sobre la santa virginidad; De
bíen de la viuvez; De la continencia; Sobre la paciencia; El combate cristiano;
Sobre la mentira; Contra la mentira; Dal trabajo de los monjes; El sermón de la
montaña. In: _____. Tratados morales.
Madrid: La Editorial Catolica / BAC, 1954. v. 12. Bilíngue.
23
Demonstro isso no 3º capítulo (“A recepção da moral agostiniana no Brasil, de
1500 a 1808”) da minha tese de doutoramento, enfatizando a formação moral e
cultural do Brasil (e da América Latina), herdeiro do Velho Mundo. Cf. SALES,
Antonio Patativa de. A filosofia/teologia
moral de Santo Agostinho: dos antecedentes gregos à apropriação e
interiorização do elemento cristão e sua recepção no Brasil colonial
(1500-1808). São Leopoldo: EST, 2010. p. 161-283. Tese (Doutorado).
24
De autoria anônima, secretíssima, sua autoria é, atualmente, atribuída ao
senhor Jean Baptiste de Bayer (1704-1771), marquês d’Argens.
25
ANÔNIMO do século XVIII. Teresa Filósofa.
Porto Alegre: L&PM, 2007. p. 98-9. (Col. L&PM Pocket, 69).
26
Também o autor do Teresa Filósofa,
sobre a hermenêutica desses mesmos indivíduos, se impunha: “A mania dos
homens”, ele diz, “é a de julgar [as] ações de Deus por aquelas que lhe são
próprias.” (ANÔNIMO, 2007, p. 98).
27 1 Coríntios
1, 25; com base no: THE NEW TESTAMENT in
the original greek: according to the Byzantine / Majority Textform. Atlanta: The
Original Word Publishers, 1991. p. 314.
28
NIETZSCHE, Friedrich. O anticristo:
Maldição do cristianismo: Ditirambos de Dionísio. São Paulo: Companhia das
Letras, 2007. p. 12 (§ 5).
29
KIERKEGAARD, Sören A. O conceito de
angústia: uma simples reflexão psicológico-demonstrativo direcionada ao
problema dogmático do pecado hereditário de Vigilius Haufniensis. Petrópolis:
Vozes; São Paulo: Editora Universitária São Francisco, 2010. p. 76. (Col.
Pensamento Humano). Já expliquei o texto referenciado, e sua sequência, através
das notas de rodapé em “De como Eros foi cuspido (Parte 1)”. Para o que se
segue, aqui, é bom que elas sejam vistas.
30 De civ.
Dei, XXII, XVII; AGOSTINHO, Santo. A cidade de Deus: contra os
pagãos. (Parte 2). 4. ed. Petrópolis: Vozes; São Paulo: Federação Agostiniana
Brasileira, 1990. p. 560. (Col. Pensamento Humano).
31
De civ. Dei, XXII, XVII.
32 In Ioan. Evang., 7, 8; AGUSTIN, San. Tratados sobre el Evangelio de San
Juan (36-124). In: _____. Obras de san Agustín. Madrid: La Editorial Catolica / BAC, 1957. v. 14 [II].
Bilingue).
Ou: “Ama, e assim não poderás fazer senão o bem” (In Ioan. Evang., 10, 7). Santiago Sierra Rubio, tratando sobre a
ação moral de Cristo, enfatiza a causa precípua do advento de Cristo como sendo
uma exaltação ao/do amor (Cf. RUBIO, Santiago Sierra. Patria y camino: Cristo en la vida y en la reflexión de San
Agustín. Madrid: Ediciones Religión y Cultura, 1997. p. 103-5). O texto
utilizado por Rubio é o que encontramos em De cat. rud., I, IV,7: “Que maior
causa pode haver da vinda do Senhor senão mostrar-nos Deus o seu amor? E brilhantemente o demonstrou, pois éramos ainda pecadores quando Cristo morreu
por nós! ...Porque a caridade é o
fim do mandamento e o pleno cumprimento
da Lei: para que nós também nos amemos uns aos outros e, assim como Ele
ofereceu por nós a sua vida, assim também demos a nossa vida pelos nossos
irmãos. [...] O amor é efetivamente mais grato quando não é perturbado pela
aridez da necessidade, mas deriva da bondade fecunda. Aquele provém da miséria,
este da misericórdia.” (AGOSTINHO, Santo. A instrução dos catecúmenos: teoria e
pratica da catequese. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 2005. p. 46-7).
33
A ética cristã, conforme Stanley Grenz, é modelar em Agostinho “como Amor a
Deus”, em Tomás de Aquino “como realização de nosso objetivo”, e em Lutero e
nos demais reformadores clássicos “como obediência de quem crê”. (Cf. GRENZ,
Stanley. Propostas de modelos cristãos. In: _____. A busca da moral: fundamentos da ética cristã. São Paulo: Vida,
2006. p. 149-92. [Col. Acadêmica]).
34
“Muitos filósofos viram a moralidade de uma maneira muito diferente. Alguns
deles [dentre os quais, Agostinho] pensavam que havia uma lei moral objetiva,
mas que esta dependia da vontade de Deus. Outros pensavam que a moralidade
tinha algo a ver com a razão, mas que o exercício da razão consistia
inteiramente em promover algum objetivo, como a própria felicidade ou o bem
estar da sociedade [aí se incluem desde Aristóteles até os epicureus e
estoicos]. Kant rejeita essas idéias, porque elas fazem a moralidade depender
de algo exterior a ela mesma: a vontade de Deus, ou o desejo de promover o
bem-estar. Ele rejeita igualmente a idéia de que a moralidade é apenas o
desenvolvimento natural de certos sentimentos que pertencem à nossa natureza
humana. Isso não seria compatível com seu caráter intrinsecamente racional.”
(WALKER, Ralph. Kant: Kant e a lei
moral. São Paulo: Editora UNESP, 1999. p. 7. [Col. Grandes Filósofos]).
35 De cat. rud., I, IV,8; itálicos meus. O resultado da ação moral, fundamentada
no princípio do amor, portanto, deságua nas três virtudes teologais (cf. 1 Coríntios 13, 13). No original latino:
“[...] uti ille [...] audiendo credat, credendo speret, sperando
amet”. Para a moral do dever, em
Kant, ver: KANT, Immanuel. Grundlegung zur Metaphysik der Sitten.
Karl Vorländer (Org.). Hamburg: Der philosophischen Bibliotek, 1965. p. 512. Bd 6 (BA 52). “Toda ação
exige a antecipação de um fim, o ser humano deve agir como se (als ob) este fim fosse realizável. [...]
Segundo Kant, a noção de felicidade, que fundamenta por exemplo as éticas do
período helenístico, como a estóica e a epicurista, é insuficiente como
fundamento da moral, porque o conceito de felicidade é variável, dependendo de
fatores subjetivos, psicológicos, ao passo que a lei moral é invariante,
universal; por isso seu fundamento é o dever” (MARCONDES, Danilo. Iniciação à História da Filosofia: dos
pré-socráticos à Wittgenstein. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998. p. 213). As semelhanças, cada qual à sua proporção,
como se vê, são enormes.
36
As semelhanças e diferenças entre os “imperativos” da ética de Agostinho e de
Kant foram tratadas em um artigo de: HARE, John E. Augustine, Kant, and the
Moral Grap. In: MATTHEWS, Gareth B. (Ed.). The augustinian tradition. Berkeley, Los Angeles, London:
University of California Press, 1999. p. 251-62.
37 BALASURUYA, Tissa. Deixar que Deus seja Deus. In: CANTONE, Carlo. (Org.). A reviravolta planetária de Deus: da “experiência religiosa” à “experiência secular”. São Paulo: Paulinas, 1995. p. 165-6. (Col. Sociologia Atual). p. 149-97.
38 Étienne Pascal (1588-1651) era funcionário fiscal, e também era advogado; tinha interesse em ciências e matemática. Estudou em Paris e, em 1610, recebeu o diploma de Direito. No mesmo ano ele retornou à sua cidade natal (Clermont), onde compra o cargo de conselheiro de Bas-Auvergne, região em torno de Clermont – que foi onde Blaise Pascal nasceu, em 19 de Junho de 1623. Impressionado
com a demonstração de espiritualidade e caridade cristãs demonstradas em favor de seu pai, Pascal foi atraído à doutrina de Jansênio... e toda a sua noção de
pecado, culpa e graça. E daí a crítica de Nietzsche, falando sobre “a corrupção de Pascal, que acreditava na
corrupção de sua razão pelo pecado original, quando ela fora corrompida apenas
pelo seu cristianismo!” (NIETZSCHE, 2007. p. 12 [§ 5]).
39
Movimento creditado ao holandês Cornélio Jansênio (1585-1638), que abalou a
Igreja Católica durante os séculos XVII e XVIII. Insatisfeito com o exagerado
racionalismo dos teólogos escolásticos, Jansênio (doutor em teologia pela
universidade de Louvain e bispo de Ypres) uniu-se a Jean Duvergier de Hauranne
(futuro abade de Saint-Cyran), nas pretensões de que o
catolicismo voltasse à disciplina e à moral da Igreja Primitiva. Baseados
em Agostinho, procuravam elementos que permitissem conciliar as teses dos
Reformadores com a doutrina da Igreja Católica. “Costuma-se acreditar que
o jansenismo tem parentesco com a teologia agostiniana, centrada no problema da
graça – e o tem efetivamente ao tempo de Port-Royal e de Pascal – e que pode
ser encontrado, após 1650, primeiro como movimento e, em seguida, após o caso
da bula Unigenitus (1713), como
partido de oposição “patriota” contra o Estado absolutista, contra todos os
“despotismos” religiosos, políticos, econômicos, sendo um dos primeiros a dar
um sentido prático à palavra despotismo, emprestada de Montesquieu. É
considerado como um bloco antijesuíta, como um fronte unido contra todas as
pretensões ultramontanas da “Corte de Roma”, e podemos vê-lo opondo sua
“catolicidade” tanto contra os protestantes calvinistas como contra os
“filósofos” das Luzes com os quais, aliás, ele tem alguma familiaridade.”
(PLONGERON, Bernard. Como explicar as pretensões do jansenismo à
“catolicidade”? Revista Concilium,
Petrópolis, n. 271, p. 95, 1970).
40
PESSOA, Fernando. Autobiografia sem factos. In: _____. Livro do desassossego: composto por Bernardo Soares, ajudante de
guarda-livros na cidade de Lisboa. São Paulo: Companhia das Letras, 1999. p.
137 [§ 112].
41
ALBERONI, Franscesco. O erotismo:
fantasias e realidades do amor e da sedução. São Paulo: Círculo do Livro,
[s.d.]. p. 49.
42
Noção que aparece, ainda que em estado de crisálida, em Novalis: “Amor pode por
vontade absoluta passar a religião.” (NOVALIS. Folha de fragmentos. In: _____. Pólen: fragmentos, diálogos, monólogo.
São Paulo: Iluminuras, 2001. p. 31 [Frag. 4]).
43
Fragmento de teplitz, n. 333, citado
em: NOVALIS, 2001, p. 200. Itálicos meus.
44
BLOOM, Allan. Gigantes e anões:
ensaios (1960-1990). São Paulo: Best Seller, [s.d.]. p. 125-66. Voltarei ao Emílio mais adiante, guiado por Bloom.
45
BLOOM, Allan. O declínio da Cultura
Ocidental: da crise da universidade à crise da sociedade. 4.
ed. São Paulo: Best Seller, 1989. p. 153.
46
Max Johann Caspar Schmidt (1806-1856). “Pensador niilista, precursor do
existencialismo, imprecador revoltado, pertence à época imediatamente
pós-hegeliana. Sua crítica é dirigida contra todas as formas de pensamento que
pretendem superar o indivíduo: sistema hegeliano, socialismo, comunismo,
liberalismo, humanismo... Caindo num esquecimento total depois de 1848, foi
redescoberto às vésperas do século XX pelo poeta anarquista J. H. Mackay, que
se empenhou em divulgar a obra e o personagem. Stirner será então 1apropriado’
pelo anarquismo individualista (contra o anarquismo comunista). Mas outros
foram capazes de entende-lo como um correspondente ateu de Kierkegaard (que
brada contra Hegel e as autoridades exatamente ao mesmo tempo que ele) e como
precursor de Nietzsche.” (BARAQUIN, Noëlla; LAFFITTE, Jacqueline. STIRNER. In:
_____. Dicionário Universitário dos
Filósofos. São Paulo: Martins Fontes, 2007. p. 287).
47
Ludwig Andreas von Feuerbach (1804-1872).
48
Isto é: STIRNER, Max. Der Einzige und
sein Eigentum. Otto Wigand (Ed.). Leipzig, 1845. (Edição original). Em seu
artigo, O falso Principio de nossa
educação (São Paulo: Imaginário, 2001), de 1842, já estão presentes os
germes de muitas das nossas modernas concepções psico-filosóficas sobre o Eu, o
Outro, a política, a educação, nossas relações, etc.
49
Ou: “Para o homem, nenhum bem supera
o discorrer cada dia sobre [o que seja] a virtude e outros temas de que me ouvistes
praticar quando examinava a mim mesmo e a outros, e que vida sem exame não é
vida digna de um ser humano.” (PLATÃO, Apol.,
38a; PLATÃO. Defesa de Sócrates. São
Paulo: Nova Cultural, 1996. p. 46. [Col. Os Pensadores]. p. 27-52).
50
STIRNER, Max. O único e a sua propriedade. Lisboa: Antígona, 2004. p. 25. Por
isso: “Só vivo quando vivo espiritualmente, só sou real como espírito.”
(STIRNER, 2004, p. 25).
51
Nascido em Trier, na Alemanha, em uma família aristocrática, Nell-Breuning (1890-1991) foi ordenado ao
sacerdócio (jesuíta) em 1921, e nomeado professor de Ética na Universidade de
Frankfurt am Main, em 1928. Sua participação foi fundamental na redação da
encíclica do Papa Pio XI, a Quadragesimo
Anno, de 1931 – essa, juntamente com a Rerum
Novarum (1891), trata sobre a “questão social” da Igreja, e desenvolve o
princípio da subsidiariedade.
52
NELL-BREUNING, Oswald von. Wie sozial ist
die Kirche? Düsseldorf: Patmos-Verlag, 1972. p.
25.
53
ULLMANN, Reinholdo; BOHNEN, Aloysio. O solidarismo. São Leopolodo: Editora
Unisinos, 1993. p. 88.
54 “’Der Einzige’ certamente continua a ser um
livro profundamente original e perturbador. Depois de cento e vinte anos, a voz
de Stirner não menos urgente, e a solução sombria que ele descreve certamente
mantém o seu poder de fascinar.” (PATERSON, R. W. K. The nihilistic egoist: Max Stirner.
London: Oxford University Press, 1971. p. 311).
55
“Agora, vemos em espelho e de modo confuso”, diz o Apóstolo, depois de tecer
seu longo elogio ao Amor (ágape); “mas então, será face a face. Agora o meu
conhecimento é limitado; então, conhecerei como sou conhecido.” (1 Coríntios 13, 12; TEB).
56
“Sem a fé, é impossível agradar a Deus, pois quem se aproxima de Deus deve crer
que ele existe e recompensa os que o procuram.” (Hebreus 11, 6; TEB). Retire a “recompensa da fé” e Deus deixa de
ser procurado, com fé, com amor. A propaganda cristã, que promete ora promete o
céu hora ameaça com o inferno, não tem para o que apelar senão para o desejo da
eterna beatitude, nos homens. Por qualquer parte, e mesmo aqui, é o egoísmo que
se mostra evidente, requerido, e, sem o qual, o homem não é.
57
STIRNER, 2004, p. 32.
58
“Vocês destinaram a palavra ‘egoísta’ à execração e ao desprezo, quando ela se
aplica principalmente a vocês.” (STIRNER, 2004, p. 33).
59
BARAQUIN; LAFFITTE, 2007, p. 288-9.
60
O tema do amor erótico, sublimado e relacionado à moral neurótica da propaganda
cristã referente ao Eu (Ego), geralmente combatido, aparece com destaque em
duas obras essenciais de Sigmund Freud: O futuro de uma ilusão (Rio de Janeiro:
Imago, 1997), de 1927; e O mal-estar na
civilização (Rio de Janeiro: Imago, 1997), de 1930. Nessa última: “No auge
do sentimento de amo, a fronteira entre ego e objeto ameaça desaparecer. Contra
todas as provas de seus sentidos, um homem que se acha enamorado declara que
‘eu’ e ‘tu’ são um só, e está preparado para se conduzir como se isso
constituísse um fato.” (FREUD, 1997, p. 11-2). O Eu e o Tu, igualmente, pode
estar ligado às convicções religiosas, na resposta positiva àquele ágape – como já visto.
61
ALVES, Rubem. Mais badulaques. São
Paulo: Parábola Editorial, 2004. p. 169. Os
itálicos são meus.